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Brincar é falar com o inconsciente

Brincar é falar com o inconsciente: Winnicott e a técnica do brincar na clínica infantil

Quando uma criança entra na sala de atendimento, ela não traz apenas palavras — traz seu corpo, seus gestos, seus silêncios e, sobretudo, seu brincar. Para quem atua na clínica psicanalítica com crianças, o brincar não é apenas um passatempo: é a própria linguagem do inconsciente em ação. É ali, no gesto aparentemente simples de manipular objetos, desenhar figuras ou construir com blocos, que o terapeuta encontra o caminho para escutar aquilo que a criança ainda não consegue simbolizar em palavras.

Donald Winnicott, um dos grandes autores da psicanálise, nos oferece um olhar profundamente sensível para essa experiência. Para ele, “brincar é uma atividade criativa, onde a criança cria e recria o mundo e a si mesma”. É através do brincar que a criança faz o percurso do subjetivo ao objetivo, construindo as bases do seu mundo psíquico.

O brincar como associação livre da infância

Na psicanálise com adultos, a técnica da associação livre — falar tudo o que vier à mente — permite que o inconsciente se manifeste. Com as crianças, cuja capacidade verbal ainda está em desenvolvimento, o brincar ocupa esse lugar. Através da brincadeira, a criança associa livremente, mostrando suas angústias, desejos, conflitos e fantasias.

Cada escolha de brinquedo, cada história inventada, cada repetição insistente de uma cena revela algo da experiência emocional da criança. Não há um manual de interpretação direta; o psicanalista escuta a criança brincando, atento aos movimentos de criação e às interrupções, às repetições e aos silêncios.

O espaço potencial e a experiência de ser

Para Winnicott, o brincar acontece num espaço potencial — uma zona intermediária entre o mundo interno da fantasia e o mundo externo da realidade compartilhada. É nesse espaço, seguro e suficientemente sustentado pelo terapeuta, que a criança pode experimentar, elaborar e criar novas formas de existir.

O terapeuta oferece o que Winnicott chama de ambiente suficientemente bom: uma presença acolhedora, estável, que permite à criança sentir-se segura o bastante para explorar suas emoções sem se perder nelas. Assim como o bebê se apoia na mãe durante o desenvolvimento inicial, a criança se apoia no terapeuta durante o processo analítico.

Os objetos: pontes entre o dentro e o fora

Um dos conceitos mais ricos de Winnicott é o dos objetos transicionais. São aqueles objetos — como o paninho, o ursinho, o travesseiro — que ajudam a criança a lidar com as primeiras experiências de separação e ausência. Esses objetos não são apenas “coisas” materiais, mas verdadeiros mediadores psíquicos, que oferecem conforto e sustentação emocional.

Na clínica, os brinquedos assumem uma função semelhante. São ferramentas através das quais a criança pode expressar conteúdos inconscientes, reviver experiências traumáticas de forma simbólica, ou simplesmente experimentar novas possibilidades de ser.

Para o terapeuta winnicottiano, cada objeto que a criança elege para o brincar carrega consigo uma função subjetiva. Não se trata de buscar um sentido fixo ou decifrar o brinquedo como um código, mas de acompanhar o modo como a criança o utiliza para sustentar seu processo de simbolização e amadurecimento emocional.

Brincar é cura

O brincar não é apenas expressão — é também transformação. Winnicott dizia que "é no brincar, e talvez somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, é capaz de ser criativo e de usar a personalidade inteira". É nesse movimento criativo que o sofrimento pode ser elaborado, que as experiências traumáticas ganham outra forma, que a criança encontra um caminho próprio para lidar com suas angústias.

A clínica do brincar não impõe significados; ela acolhe o que surge. O terapeuta está ali como testemunha e facilitador, oferecendo a estabilidade necessária para que a criança possa brincar com o que, talvez, antes a paralisava.

A ética do brincar na clínica psicanalítica

Por fim, o trabalho clínico com crianças exige, do psicanalista, uma delicada ética de escuta: saber sustentar o não saber, acompanhar o ritmo da criança, respeitar o tempo de cada elaboração. Não há pressa no brincar. A cura não é um objetivo imposto, mas um processo que acontece no próprio ato de brincar, de experimentar, de criar.

Como Winnicott nos ensinou, o que cura é o ambiente suficientemente bom, o brincar livre e criativo, e a presença atenta de quem escuta sem antecipar respostas. Na clínica winnicottiana, o brincar é, ao mesmo tempo, fala e escuta, dor e reparação, vazio e criação.

 

 
 
 

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