Ética da psicanálise
- Ingrid Cariello
- 18 de jun.
- 3 min de leitura
Entre o Desejo, o Inútil e o Sensível: a ética da psicanálise como escuta do inassimilável
A psicanálise nasce da escuta. Mas não de qualquer escuta. Ela se volta àquilo que escapa à consciência, àquilo que o sujeito diz sem saber que diz. É essa escuta que mergulha nos desvios do desejo, nos silêncios do sintoma, nas falhas da linguagem. Escuta que reconhece no tropeço — no lapso, no sonho, no recalque — a verdade de um sujeito dividido.
Sigmund Freud, em O mal-estar na civilização, nos lembra que o preço da vida em sociedade é alto. Para viver em comunidade, precisamos renunciar à satisfação imediata. A cultura exige a repressão do gozo, do impulso sexual e agressivo — e o que é reprimido retorna sob outras formas: angústias, sintomas, inquietações. A civilização se ergue, paradoxalmente, sobre o que ela mesma tenta negar.
Mas a psicanálise não promete devolver o gozo perdido. Ao contrário das promessas de bem-estar da cultura do desempenho, ela não visa a uma vida plena, livre de faltas. Ela nos convida a habitar essa falta de um modo singular. O sofrimento não é apagado — é escutado.
Jacques Lacan, leitor radical de Freud, foi direto: “a única ética da psicanálise é a ética do desejo”. Mas não o desejo como posse ou como plenitude. Trata-se do desejo como movimento — esse que nos atravessa, sem garantias, e nos constitui como sujeitos faltosos. A ética do desejo é a arte de não ceder à tentação do ideal. É sustentar o vazio sem preenchê-lo a qualquer custo.
Essa ética da falta tensiona a tradição ocidental, tão marcada pela busca do bem, da completude, da finalidade. Ao invés disso, a psicanálise nos propõe um caminho difícil: sustentar o que não se encaixa. Fazer da incompletude um lugar habitável.
E é nesse ponto que o pensamento de Jacques Rancière se aproxima da psicanálise. Para ele, a política não é a gestão da ordem social, mas o momento em que essa ordem é interrompida. A política acontece quando os “sem-parte” — aqueles que não eram considerados parte do todo — irrompem e fazem ouvir o que antes era inaudível.
Rancière chama isso de partilha do sensível. Em outras palavras, o mundo é dividido por regimes de visibilidade e invisibilidade, de fala e silêncio. E a política é o momento em que essa partilha é contestada. Assim como o sujeito freudiano emerge no tropeço, a política emerge no dissenso.
Ambos os campos — o da clínica e o da política — exigem escuta. Escuta do que não cabe. Do que insiste em existir mesmo quando é recusado. Do que não tem nome, mas grita no corpo ou nas ruas.
E se ampliarmos esse campo ético, encontramos ainda outro ressoar: a voz potente de Ailton Krenak. Em A vida não é útil, ele desestabiliza o fundamento utilitarista da vida moderna. Para Krenak, transformar tudo em função — econômica, técnica, moral — é empobrecer a existência. A vida não precisa servir para algo. A montanha, o rio, o canto de um pássaro… tudo isso existe sem utilidade e, por isso mesmo, sustenta o mundo.
Krenak nos convida a reconhecer o valor do inútil. E o que é o desejo, senão uma forma de inútil que move o sujeito sem levá-lo a lugar algum definido? Desejo que não se realiza plenamente, mas que insiste. Que retorna. Que pulsa.
Na lógica do útil, o sujeito adoece sob a tirania da produtividade. O planeta adoece sob a lógica da extração e do acúmulo. Já na lógica do desejo e do inútil, há espaço para o encontro, o ritmo, o respiro.
Psicanálise, política e cosmologia indígena se encontram, então, num ponto delicado e precioso: o reconhecimento de que a vida não cabe nos moldes da eficácia. Há uma ética do resto, do deslocado, do irredutível. Uma ética do sensível, que resiste à captura pelos sistemas de controle e nomeação.
A psicanálise sustenta o desejo como resto que escapa a todo ideal de completude. Rancière sustenta o dissenso como força política que rompe com a ordem dominante. Krenak sustenta o inútil como modo de existência que recusa a lógica colonial da função.
Todos, cada um à sua maneira, nos lembram: há vida para além da norma. Há potência no que não serve, no que não performa, no que não se encaixa. Talvez, justamente aí, onde a linguagem falha e a lógica se desfaz, seja possível vislumbrar uma outra ética — uma que escuta, acolhe e sustenta o que insiste em existir.
Uma ética onde a vida — essa dança frágil, inútil e necessária — possa continuar a respirar.
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