Devastação e horror ao feminino
- Ingrid Cariello
- 18 de jun.
- 4 min de leitura
Devastação e horror ao feminino: uma leitura psicanalítica da violência contra as mulheres
Apesar de todos os avanços históricos, a violência contra as mulheres segue como uma ferida aberta em nossas sociedades. Feminicídios, abusos, assédios e silenciamentos atravessam as histórias femininas, compondo um cenário onde o horror ao feminino insiste em se manifestar. A psicanálise, ao se aproximar dessas questões, pode oferecer algumas chaves de leitura para esse movimento repetitivo e devastador.
Ainda hoje, muitas mulheres enfrentam obstáculos institucionais e culturais para denunciar abusos e alcançar justiça. A autonomia sobre o próprio corpo — incluindo o direito ao aborto e o acesso a métodos contraceptivos — permanece sendo alvo de disputas políticas e morais. Mesmo as conquistas do feminismo são constantemente tensionadas por forças conservadoras que insistem em controlar o desejo e o lugar das mulheres na sociedade.
Por que o feminino continua sendo, ao longo dos séculos, alvo de violência, silenciamento e perseguição?
A ameaça do poder feminino
Historicamente, o feminino foi associado a um lugar de fragilidade ou de perigo. Silvia Federici (2004), em sua leitura da grande caça às bruxas, mostra como o capitalismo nascente precisou subjugar o corpo e o saber das mulheres para consolidar-se. As mulheres, especialmente aquelas que fugiam do modelo submisso — as curandeiras, as viúvas, as solteiras, as sexualmente livres —, foram perseguidas, torturadas e mortas. A caça às bruxas não foi apenas um capítulo sombrio da história europeia, mas um dispositivo político de controle do feminino e de sua potência criadora.
Essa perseguição atravessa os séculos. Como aponta Simone de Beauvoir (1970), “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Ou seja, o feminino não é um dado natural, mas uma construção social e psíquica permeada por regras, interdições e fantasias culturais.
A escuta psicanalítica do sofrimento feminino
A própria psicanálise nasce de uma escuta dessas mulheres silenciadas. Freud, ao se debruçar sobre o sofrimento histérico, encontrou nos sintomas femininos não apenas um enigma clínico, mas uma porta de entrada para a compreensão do inconsciente. Essas mulheres, muitas vezes desacreditadas por médicos e pela sociedade, traziam no corpo e na fala as marcas de um recalque social e subjetivo: desejos interditos, angústias recalcadas, medos inconfessáveis.
O que há nesses silêncios femininos? O que essas mulheres não diziam — ou não podiam dizer?
Lacan, ao retomar e aprofundar as formulações freudianas, aponta que o feminino é precisamente aquilo que escapa à lógica fálica, aquilo que a linguagem não dá conta de simbolizar completamente. O gozo feminino, como nos ensina Lacan (1998), está além do significável: “não há A Mulher”, diz ele — porque o feminino não se universaliza, não cabe em definições totalizantes.
Esse gozo que escapa parece ser justamente o que, muitas vezes, desperta o horror e a necessidade de controle.
Quando o desejo do outro se torna intolerável
O feminino, em sua potência de desejar, de ser autônomo, de amar outras mulheres, de não precisar da validação masculina, pode ser vivido como uma ameaça para aqueles que não suportam a alteridade. O que o outro não consegue aceitar em si mesmo — seu próprio desejo, sua própria ambivalência, sua própria sexualidade —, pode ser projetado na figura da mulher como algo que precisa ser reprimido ou eliminado.
A violência contra as mulheres, nesse sentido, não é apenas um ato individual, mas um sintoma de uma sociedade que ainda lida mal com o desejo, com a diferença e com o próprio feminino que habita a todos nós — homens e mulheres.
Como lembra Judith Butler (1990), gênero e desejo são sempre atravessados por construções culturais e políticas, sendo, portanto, fluídos e contingentes. Negar essa fluidez é, muitas vezes, recusar-se a lidar com o próprio desconhecido interno.
A via do amor: possibilidade de abertura ao outro
Se o horror ao feminino está enlaçado com a dificuldade de acolher o desejo e a diferença, talvez a saída passe por aquilo que a psicanálise sempre trabalhou: o amor e a transferência como possibilidade de deslocamento.
Rubem Alves (1998), em uma bela metáfora, afirma que “o ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe; a fala é masculina, algo que penetra”. O encontro amoroso, verdadeiro, acontece quando somos capazes de acolher e de nos deixar afetar pelo outro, sem a necessidade de apagá-lo.
Sônia Braga, ao falar de Tom Jobim, dizia que o segredo do amor é a androginia — sermos, todos nós, ao mesmo tempo, masculinos e femininos, ouvintes e falantes, receptivos e ativos.
Na clínica, vemos o quanto a dificuldade em lidar com o próprio desejo pode gerar posições reativas de ódio, controle e violência. A escuta psicanalítica oferece um espaço onde o sujeito pode, finalmente, encontrar um lugar de fala e escuta para si e para o outro, abrindo a possibilidade de que o feminino — em sua singularidade e potência — deixe de ser vivido como uma ameaça.
O horror ao feminino é, também, o horror ao desejo
O caminho, portanto, não é o silenciamento ou a normatização do desejo, mas o acolhimento daquilo que nos constitui como sujeitos desejantes e divididos. Porque, no fundo, o horror ao feminino é também o horror ao próprio desejo — esse território onde não há garantias, onde há sempre o risco, mas também a possibilidade do encontro.
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