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Luto e gozo em psicanálise

Nunca mais: o luto e o gozo em "O Corvo" de Edgar Allan Poe — uma leitura psicanalítica

"Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,Não há de erguer-se, ai! nunca mais!"(O Corvo, Edgar Allan Poe)

Entre o desespero e o vazio, entre a ausência e o excesso, o célebre poema O Corvo nos conduz ao coração do sofrimento psíquico. A repetição incansável do "Nevermore" (ou "Nunca mais") ecoa não apenas na voz do corvo, mas na própria estrutura subjetiva do narrador. O que Poe descreve poeticamente, a psicanálise lê como uma travessia pelo território do luto e do gozo.

Desde o início do poema, encontramos um sujeito exausto, devastado pela morte da esposa, mergulhado em uma angústia que não encontra alívio. A súbita aparição do corvo não se impõe como um simples evento externo, mas como uma materialização psíquica de sua dor: o pássaro negro simboliza o que insiste, o que retorna, o que ocupa o lugar do impossível de elaborar.

A cada pergunta, o corvo responde com a mesma palavra: Nevermore. Não há desfecho, não há esperança, não há futuro restaurado. O luto deste sujeito é marcado não apenas pela ausência do objeto amado, mas pela impossibilidade de simbolizar essa perda. O vazio permanece.

A repetição como gozo

É aqui que a psicanálise nos oferece um ponto de leitura fundamental. A repetição do "nunca mais" não visa consolar o narrador. Pelo contrário, repete sua dor, expõe sua ferida aberta. Não é o prazer da recordação amorosa, mas uma satisfação paradoxal obtida na própria repetição do sofrimento.

Lacan nos ajuda a situar essa lógica ao falar do gozo: uma satisfação que excede o princípio do prazer e toca o limite do suportável. O gozo não visa o bem-estar, mas insiste no que não serve para nada, como nos lembra Lacan (1967): “O gozo é aquilo que não serve pra nada”.

O sujeito de O Corvo busca respostas — mas, na verdade, ele busca sustentar o próprio enigma. O corvo, enquanto figura do Real, devolve sempre o mesmo: o impossível de ser simbolizado. Como escreve Lacan (1972), o supereu aparece aqui como esse imperativo silencioso e feroz: "Goza!". A exigência de gozo não cessa, mesmo quando o preço disso é o próprio sofrimento.

O luto e o impossível de simbolizar

Ao longo do poema, vemos o narrador tentando, de forma desesperada, transformar sua dor em linguagem, em significado. Contudo, o que retorna é sempre a falha dessa tentativa: o real da perda permanece irredutível.

Não se trata, portanto, de uma busca por prazer no sentido habitual. O que emerge é uma satisfação sombria, um gozo ligado à repetição do vazio. A perda da esposa não encontra inscrição simbólica suficiente; o que resta é a presença constante da ausência.

Angústia e repetição: o "Nunca mais" como limite do desejo

O "Nunca mais" marca o ponto onde o desejo não encontra mais objeto possível. Não há reconexão, não há retorno, não há reparação. A insistência do narrador em dialogar com o corvo — mesmo já sabendo a resposta — revela o funcionamento próprio do gozo: perguntar novamente não busca novas respostas, mas sustenta o circuito repetitivo do sofrimento.

Como bem formula Lacan (1967): “O Gozo do Outro não é o signo do amor.”O narrador já não dialoga com um Outro amoroso, mas com a opacidade de um gozo que nada devolve além do vazio.

A literatura como espelho da clínica

Ao lermos O Corvo sob a luz da psicanálise, podemos vislumbrar o quanto a literatura toca os territórios mais íntimos e obscuros do psiquismo. O poema de Poe não descreve apenas o luto, mas a experiência de estar aprisionado em um circuito de gozo, onde a perda não cessa e o sofrimento se converte em algo que, paradoxalmente, mantém o sujeito em movimento — mesmo que seja em círculos.

Na clínica, encontramos muitos sujeitos que, assim como o narrador de Poe, insistem em manter vivo aquilo que já não pode mais retornar. Essa insistência marca o ponto onde a dor ultrapassa o sofrimento comum e toca o registro do gozo: uma satisfação paradoxal no próprio fracasso de simbolizar o que foi perdido.

O "Nunca mais" e o trabalho da psicanálise

O trabalho analítico não visa apagar o "Nunca mais", mas acompanhar o sujeito na travessia de seu vazio, possibilitando novas formas de relação com a falta. Onde o "Nevermore" retorna como ferida repetitiva, a escuta psicanalítica oferece um espaço onde o sujeito pode, quem sabe, reinscrever sua perda em outros modos de existir.

Porque, afinal, o gozo é aquilo que não serve pra nada — mas é justamente aí que a psicanálise aposta na possibilidade de deslocamento e criação.

 

 
 
 

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